Obrigado, Carlos. Até sempre

Desde 2006 que sei que pouca coisa une pessoas, independentemente das origens, dos percursos e das crenças, como a oportunidade de cantar lado a lado. A 28 de Abril de 2007 fui levado na maré cheia de Lisboa até Almada para fazer algo que não compreendia bem ainda: cantar emoções que não eram minhas, ânsias que não eram dos meus dias, desejos que não precisava de desejar. Tudo porque as canções que cantaria e ouviria o tinham feito por mim mais de uma década antes de nascer.

Lembro-me dos nervos. Se já conhecesse o “De não saber o que me espera” tê-lo-ia cantado, para dentro, para ter coragem. Em vez disso, cantámos todos, ainda antes de ir para o palco, ali mesmo à entrada, de porta fechada. Não era coragem, já. Era certeza. Certeza de coisas que não se explicam, de como as coisas são certas, mesmo que intangíveis. De que não estava só e o que ia fazer só assim tinha sentido. Entrámos e fizemos o que sempre fizemos mas mais incandescente, mais etéreo, mais intenso. De súbito, aquela emoção era minha, aquela ânsia era de agora e o desejo era urgente. O aplauso era, mais que tudo, um bálsamo para nos lembrar da vida, que estava ali e era melhor porque a cantávamos. Um Homem na Cidade, um tema de uma delicadeza incomum, tinha acabado de explodir em nós sem nunca deixar de ser uma canção de embalar a liberdade no coração.

Agora, o intervalo e a espera. Podíamos fazer o que era esperado de nós: secar o bar. Abandonar o barco uma vez terminado o rum. Ser uma tuna com tudo o que isso implica na mente das pessoas, algumas das quais se tinham cruzado connosco nas semi-finais e nas finais, com o habitual comentário jocoso e o desdém, sempre o desdém. Em vez disso, fizemos do foyeur casa e cantámos mais. Aquela energia não se dissipa nem desaparece sem ser convertida em algo dentro de alguém. Cantámos, outras pessoas cantaram connosco. Até Fernando Tordo apareceu para ouvir. Ninguém arredava pé e os sorrisos eram demasiado bons, demasiado confortáveis.

Era tempo de prémios e o nosso já ninguém nos tirava: aquela sensação. A honra que era fazer parte do que se estava a passar e estar num certame que honra tudo o que a Tuna Académica de Lisboa sempre quis representar: o legado da música de intervenção em Portugal e o refrescar desse legado, perpetuando-o. E melhor ainda que o prémio que nos foi atribuído, tivemos a sorte de receber bem mais que isso. Quando nos foi pedido que repetíssemos aquela canção debaixo de um coro de “tuna, tuna, tuna,” alguém fez questão de empurrar um ilustre incauto conhecido como Carlos do Carmo para o palco, ele próprio agraciado com um prémio carreira no festival. Nós não estávamos preparados e ele também não. Mas, com a mestria de quem já fazia aquilo antes de qualquer um de nós ter nascido, declarou-se mestre de cerimónias e, nas suas palavras, encheu chouriços – não que alguma vez tenha parecido que o estava a fazer. Notou a ausência do clarinete, que já tinha abandonado para cumprir os seus deveres de pai, mas não se fez rogar. A honra foi toda nossa, Carlos.

Cantar com um mestre é uma história que guardaremos connosco muito para lá do tempo. E ainda assim não perdurará tanto como a memória de Carlos do Carmo e de quanta da nossa liberdade, novamente sob assalto nos tempos que correm, devemos às canções e à voz que lhes deu vida.

Obrigado, Carlos. Até sempre.

Crónica por Daniel “Kalanga” Orge

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