09 Abr Enumeração da matéria de uma história de amor, escondida entre breves considerações líricas
Disse Eça de Queirós: “O amor eterno é o amor impossível. Os amores possíveis começam a morrer no dia em que se concretizam.”.
Esta não é a história de um amor incondicional. Não se compõe em linhas fáceis, nem se pinta com matizes doces e cristalinas. Não é a história de um amor eterno, sempre igual, sempre inquestionado e, por tudo isso, impossível.
Esta é a história de um amor que se concretizou quando entrei na Voz do Operário, como tantos outros, numa quente noite de outubro. Dessa noite, lembro-me de tudo: da boleia para o ensaio, do receio do desconhecido, da audição de voz, do sentar acanhado num canto da sala, do que ouvi ser tocado e cantado, das conversas no final e da certeza de querer voltar.
Esta é a história de um amor que, nessa noite quente de outubro, começou a morrer. E como morreu, este nosso amor! Eu, amante e ela, amada, juntos, (vi)vendo o nosso amor morrer. Ainda hoje o vemos. Não morrer como epílogo do fatalismo ou como caminho de sofrimento. Antes morrer porque tudo o que vive morre. Morrer para atestar tudo o que vivemos e continuamos a viver. Morrer intensamente, chama que arde, que consome.
Esta é a história dos ensaios na Voz, nos Económicos, no Restelo, na Encarnação. Dos quilómetros do Portugal viajado e das léguas de fronteiras cruzadas (e tudo isso a cantar). Das ligações forjadas à força de fazer música. Das frustrações que levei, caladas, no fim de ensaios frustrantes. Dos olhares entusiasmados trocados durante as múltiplas repetições de cada música. Do primeiro jantar de Natal e de todos os outros convívios que se seguiram, onde fiquei boquiaberto pelo facto de, de uma maneira ou de outra, sempre todos quererem e arranjarem maneira de voltar. Da Quinta Dinastia e de todos os que se seguiram. De todos os que já cá estavam antes de mim e que me desvendaram, sabiamente, esta estranha forma de amar. De todas as vezes em que não tinha vontade de ir aos ensaios. Das vezes em que me forcei a ir e saí de lá revigorado. Das discussões, das muitas discussões. Dos egos em choque, digladiando-se em argumentos. Dos queijinhos, para sempre embutidos debaixo do queijão. E das histórias, dos milhares e milhares de histórias, contadas ou vividas. Dos festivais dos dias desaguados em noites e das noites desaguadas em dias. Das vezes em que o coração batia mais rápido e, em resposta, fazíamos sinais uns aos outros, mesmo antes da cortina se abrir. Dos bocados de Lisboa descobertos. Dos fins das atuações, os bons e os maus. De como todos estes momentos se sucederam e fizeram, silenciosamente, um dos caminhos mais bonitos da minha vida. Olho para trás, já sem noção da sua grandeza e sinto-me pequenino. Sinto-me grato por isto tudo e ainda mais por saber que outros a seguir a mim sentirão tudo isto também.
Esta é uma história de um amor possível. Não um amor limitado, mas um amor possível. Um amor que se fez constantemente possibilidade. Que me desafiou a dar constantemente o melhor de mim. Que me desafiou a olhar os outros, companheiros de viagem, e com eles abrir todos os caminhos de criação, de partilha, de camaradagem que se fizeram possibilidade à minha frente. Que me fez ouvir, aprender e crescer.
Esta não é a história de um amor imortal. É a história de uma chama ardente e as chamas às vezes ardem mais, outras menos. Eventualmente, a minha passará a arder de mais longe e apagar-se-á. A da Tuna Académica de Lisboa nunca deixará de alumiar, num inconformismo incessante de quem ousa contradizer e surpreender tudo e todos, se calhar até o Eça de Queirós. Contradizê-lo na certeza do paradoxo cantado por Vinicius de Moraes: de que este amor (que sinto eu e muitos outros e outros que ainda hão-de vir) não é imortal, posto que é chama; mas é infinito, enquanto dure.
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