Parte Disto

Parte Disto

Sonhei que chegavas, ofegante e náufrago, ainda enleado na capa das nossas virtudes. Levantava-me para te abraçar, porque te quero assim mesmo, frágil, cheio de incertezas e máculas. [E mais me compele a tanto querer-te o tanto que te devo pelo acaso que sou.] Lá fora já não chovia. Conhecíamos aquele ruído: era só água que ainda brincava nos carris do eléctrico. Cá dentro estávamos já todos à tua espera, dispostos em tragos cúmplices, como vórtices em repouso. [Espera, está quase. Vá, tira essa capa e atira-a ao chão. Esquece as virtudes e começa de novo. Se gritares a palavra “GRITO”, sabes o que acontece? É o universo todo que implode, que se cogumeliza, crava e ressemeia. Experimenta! É engraçado.]

No meu sonho tu gritavas. As virtudes voavam. A água tinha sabores novos e corria então em direcções que os carris não ditavam. Pedaços de um corpo tentacular e odisseico, rodopiávamos até cair novamente na erva rociada da nossa solidão, matilha exausta e saciada. Sonhei que acordava e que outros chegavam depois de ti. Sonhei que não sonhava nunca. Como disse, outros chegavam e tudo isto se repetia num caos lento e organizado de muitos tempos dispersos. [Assim, devagar, conseguimos: a melhor organização de todos os tempos.]

(Dezembro 2009)

Crónica por João “Jó Gabi” Almeida

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1 Comentário
  • Daniel Orge
    Postado em 16:45h, 05 Março Responder

    “Obrigado por me deixarem fazer parte disto.”

    Bravo.

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